Eleonora Albano
Física, gramática e pragmática dos sons de fala
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Eleonora Albano
Eleonora Albano
Eleonora Cavalcante Albano é professora titular de Fonética e Fonologia da Unicamp, onde fundou o Laboratório de Fonética e Psicolinguística (LAFAPE). É membro fundador da Association for Laboratory Phonology, tendo participado da sua primeira diretoria. Liderou grandes projetos interinstitucionais apoiados pela FAPESP, a CAPES e o CNPq. É autora dos seguintes livros: No reino da fala: a linguagem e seus sons (Ática, 1985); Da fala à linguagem: tocando de ouvido (Martins Fontes, 1990); O gesto e suas bordas: esboço de fonologia acústico-articulatória do português brasileiro (Mercado de Letras, 2001); e O gesto audível: fonologia como pragmática (Cortez, 2020). Trabalha pela integração da fonologia com a fonética e a fonoestilística. Trabalha também pela valorização das ciências humanas e por uma transdisciplinaridade insubmissa a interesses alheios às causas humanísticas.
Abstract →
Eleonora Albano
Física, gramática e pragmática dos sons de fala
Esta apresentação vai argumentar que a obliteração da cisão entre a Fonética e a Fonologia, que tem crescente respaldo empírico, exige que se cultivem e integrem ambas as tradições para encontrar soluções efetivas para os problemas de análise fônica. A razão é que não existe uma mecânica fônica universal e, portanto, todos os problemas fônicos de interesse emergem dentro de uma língua ou variedade linguística. Por mais que os balize, a física da fala não determina os fatos fônicos, nem interfere no seu uso.
O primeiro passo do argumento é ilustrar o modus operandi da física da fala examinando uma restrição biomecânica forte: a incompressibilidade da língua, a saber, o fato de ela ser um hidróstato muscular (i.e., ter volume constante, suporte na musculatura intrínseca e maior variedade de movimentos que um sistema musculoesquelético). Essa restrição, incontornável em termos holísticos, é contornada, não obstante, por línguas diferentes de modos diferentes. A razão é que ela acarreta uma série de restrições mais fracas, diferentes para diferentes regiões do trato vocal. Assim, as línguas e suas variedades estão livres para escolher as regiões preferenciais onde se submeterem e/ou tirarem partido dos limites físicos ditados pela incompressibilidade.
O segundo passo do argumento é ilustrá-lo com algumas das estratégias usadas pelas línguas para lidar com as consequências da incompressibilidade na região palatal. Há soluções que se manifestam no léxico, através de probabilidades fonotáticas. Há soluções que se manifestam na fala corrente, através de processos fônicos. Tais processos podem, por sua vez, estar em equilíbrio, comportando-se como categóricos, ou estar em desequilíbrio, comportando-se como gradientes. Um caso exemplar é a africação das oclusivas dento-alveolares em diferentes variedades regionais do português brasileiro (doravante, PB).
O terceiro passo do argumento é ilustrá-lo com uma estratégia que parece ser usada universalmente para gerar diversidade linguística a partir dos limites físicos ditados pela incompressibilidade. Diferentes línguas escolhem diferentes bases articulatórias para facilitar a movimentação do hidróstato lingual no trato vocal. Isso será ilustrado com as principais diferenças entre o PB e o francês quanto à realização da epêntese.
O passo final do argumento é ilustrá-lo com evidências de que uma língua pode se desviar da sua base articulatória para produzir os mais variados efeitos de sentido. A razão é que nós, humanos, somos todos capazes de deslocar esse viés posicional da língua para outras regiões, produzindo posturas articulatórias coloridas por aquilo que John Laver (1980) chamou de qualidades de voz. As qualidades de voz sinalizam emoções, atitudes, papeis, identidades, e muito mais – a depender do contexto. Têm, portanto, implicações pragmáticas, a maioria das quais ainda está por explorar.
Ao final da apresentação, espera-se ter convencido os participantes de que a física da fala contribui para sustentar a versatilidade das ações linguísticas características das sociedades humanas. Há uma razão muito antiga para isso: os nossos órgãos vocais, assim como as suas bases neurais, adquiriram suficiente agilidade e flexibilidade ao longo da evolução do gênero homo.